Contexto imediato
A derrota no Estadio Municipal de El Alto, a mais de 4.000 metros de altitude, encerra uma campanha marcada por oscilações, troca de ideias e pressão crescente. O resultado tem peso esportivo e simbólico: além de ser raro perder para a Bolívia, a Seleção fecha as Eliminatórias apenas em quinto, algo impensável em outros ciclos. A Bolívia, por sua vez, fez história e conquistou a chance de brigar por vaga na Copa no torneio de repescagem intercontinental.
Como foi o jogo
O Brasil começou tentando acelerar pelos lados, com amplitude e inversões para encontrar espaços no corredor fraco. A Bolívia respondeu com bloco médio-baixo compacto, dupla de volantes protegendo a área e agressividade no primeiro contato – especialmente após a linha da bola, para impedir giros de meia-altura.
Com a bola, os donos da casa apostaram em ligações diretas e conduções curtas para ganhar faltas em zonas perigosas, reduzindo a quantidade de trocas e o tempo de exposição em um jogo de alta exigência física. Quando recuperava, o Brasil tinha posse estéril, muitas vezes com cinco ou seis jogadores à frente da linha da bola, mas sem atacar o espaço nas costas do lateral oposto. Faltaram paciência e timing: cruzamentos sem preparo, chutes de média distância como recurso, e pouco jogo entrelinhas.
O lance-chave saiu aos 45+ do primeiro tempo: pênalti marcado para a Bolívia, Miguelito converteu e colocou os bolivianos à frente. Dalí em diante, o Brasil ficou ainda mais vulnerável ao relógio e ao contexto: altitude, gramado que prende um pouco a bola, e adversário confortável defendendo curto. A reta final teve empilhamento de atacantes e bolas alçadas, mas sem uma plataforma consistente para a segunda bola.

Altitude, arbitragem e o entorno
Jogar em El Alto é singular. O impacto fisiológico é real e costuma alterar intensidade, potência de sprints e recuperação. Após o jogo, Raphinha desabafou publicamente, citando o desgaste e criticando decisões – um retrato da frustração no elenco. Também houve protestos da direção brasileira quanto a arbitragem e logística do evento, com relatos de confusão de segurança e até interferência indevida de gandulas. São versões brasileiras que ajudam a explicar o clima pós-jogo, ainda que não mudem o placar.
O plano de jogo que não entrou em campo
Há três pontos táticos que explicam a dificuldade:
- Ataque posicional previsível: a Seleção circulou a bola de um lado para o outro sem criar superioridade qualitativa. Faltou atrair por dentro para soltar por fora (ou vice-versa) com rupturas coordenadas.
- Pouca estrutura para segunda bola: quando o Brasil decidiu acelerar por cruzamentos, raramente havia “caça” organizada ao rebote – os volantes ficavam no limbo: nem protegiam transição, nem pisavam a área com sincronia.
- Desencaixe emocional: após o 0–1, o time entrou em modo ansiedade. Tomadas de decisão apressadas, chutes sem preparo e distância entre setores aumentaram.
O que funcionou (mesmo na derrota)
- Recuperação imediata após perda em alguns momentos, com triângulos bem montados pelo lado esquerdo.
- Volume: apesar da improdutividade, o Brasil manteve a bola no campo ofensivo por longos trechos – mas converteu pouco em chances grandes.
A noite de Miguelito
A história do jogo se escreve nos detalhes. Miguel Terceros, conhecido como Miguelito (revelado no Santos e hoje no América-MG), mostrou frieza na cobrança e personalidade para segurar bola, cavar faltas e respirar o time na altitude. Ídolo instantâneo, ele simboliza a nova Bolívia: mais organizada, intensa e madura para jogos de pressão. InfoMoney
O que muda na tabela e no caminho do Brasil
- Pós-jogo: a derrota confirma o Brasil em 5º nas Eliminatórias. No ciclo atual, isso não impede a vaga direta (o Brasil já estava classificado), mas expõe a pior campanha em décadas e eleva a cobrança à porta da Copa. Já a Bolívia garante o passaporte para a repescagem intercontinental – um feito enorme.
Termômetro da Seleção
Setor por setor:
- Defesa — Organização razoável em campo aberto, mas hesitação em bolas paradas e pouco domínio aéreo ofensivo.
- Meio-campo — Circulou sem fraturar linhas. Quando alguém recebia entre zagueiro e lateral, faltava apoio em terceiro homem para acelerar.
- Ataque — Muito corredor, pouca área. Em jogos assim, pivô e atacante de ataque ao primeiro pau fazem falta; sem isso, cruzamentos “flutuados” são alimento para zagueiro alto e descansado.
Banco e ajustes: as trocas aumentaram o volume, mas não qualificaram a construção. Faltou trocar a lógica do ataque (ex.: atacar por dentro para soltar fora com passe de ruptura), e não apenas os nomes.
Quadro tático em 5 lances (explicado em palavras)
- Min 12 — Brasil arma 3+2 na base; extremo aberto recebe fixando lateral; sem ruptura do interior, sobra cruzamento.
- Min 27 — Recuperação alta funciona; finalização travada; sinal de que a pressão poderia ser arma, mas a equipe não sustentou fisicamente.
- 45+ — Pênalti para a Bolívia e gol de Miguelito.
- 2º tempo, 60–75 — Brasil empilha atacantes, mas sem ajustar a zona de rebote; goleiro e zaga dominam.
- 80–90+ — Bola aérea e precipitação; Bolívia defende a área com sucesso e “mata” o relógio. Reuters
Repercussão
A imprensa internacional destacou o feito boliviano e a crise de desempenho brasileira na reta final. No Brasil, há críticas à gestão de energia, ao desenho tático e à postura diante das adversidades. Jogadores e dirigentes manifestaram incômodo com o contexto do jogo (arbitragem, logística e segurança), e Raphinha foi a voz mais clara sobre o desgaste e as decisões da comissão. Tudo isso compõe o pós-jogo emocional, mas não substitui a necessidade de correções técnicas a curto prazo.
Quadro de lições (para salvar)
- Preparar o jogo de altitude não é só fisiologia; é também modelo de posse: menos condução longa, mais passes curtos e basculações com ruptura.
- Ensaiar bola parada ofensiva com variações: tela no goleiro, bloqueios legais e ataques alternados ao primeiro/segundo pau.
- Plano B real: quando a posse não morde, estrutura de segunda bola e rebotes precisa estar integrada ao desenho tático.
- Gestão emocional: treinar o time para ritmar os 90’ mesmo atrás no placar, sem perder o plano.
Quem ganhou e quem perdeu com a noite
- Ganhou: Bolívia — maturidade competitiva, vitória histórica e moral elevada para a repescagem. FIFA
- Perdeu: Brasil — além do placar, perdeu a chance de virar a página com uma atuação convincente às vésperas do Mundial. A narrativa da “pior campanha” ganhou combustível.
Próximos passos
O calendário pós-Eliminatórias muda o foco para amistosos e a preparação final para o Mundial. Para virar a chave, a Seleção precisa:
- Definir um eixo no meio (8/10) que conecte extremos e atacantes;
- Escolher perfis complementares no ataque (um ponta de profundidade, um de apoio, um 9 que ataque espaço);
- Aprimorar transição defensiva: se não pressionar, pelo menos retardar com faltas táticas e coberturas curtas;
- Refinar bola parada (a favor e contra) — recorte que decide jogos na altitude e em campos hostis.
Perguntas da Torcida
1) A altitude “explica” a derrota?
Explica parte. O ambiente de El Alto (mais de 4.000 m) cobra pedágio físico e mental. Mas o Brasil também errou modelo: pouca infiltração e previsibilidade tornaram o trabalho boliviano mais simples.
2) Houve erro de arbitragem no pênalti?
O lance foi polêmico e gerou reclamações. A versão brasileira é de que decisões e o contexto do jogo prejudicaram a equipe, mas isso faz parte do entorno; em campo, o Brasil teve 45’+ para reagir e não conseguiu.
3) O que representa o 5º lugar?
Representa o final de uma campanha abaixo do histórico, e aumenta a cobrança por um salto de desempenho antes da Copa.
4) Quem foi o melhor em campo?
Miguelito: pela frieza no pênalti e pela capacidade de segurar bola sob pressão, comprando tempo para a Bolívia. FIFA
5) A Bolívia pode ir à Copa?
Sim. Com a vitória, garantiu a repescagem intercontinental. Terá que confirmar no torneio classificatório. FIFA
Apito Final
Foi uma noite que condensa problemas que a Seleção vem arrastando: ataque posicional sem profundidade calibrada, pouca agressividade na zona de rebote e oscilação emocional quando o jogo exige cabeça fria. A altitude, a arbitragem e o caos do entorno ajudam a contar a história, mas não podem ser o enredo. Ainda há tempo para calibrar ideias e arestas, mas o relógio virou protagonista. A derrota em El Alto não é o fim do mundo — é um sinal amarelo. E sinal amarelo, em futebol de alto nível, pede ação: método, treino e convicções claras.